sábado, 2 de julho de 2011

O acaso que mudou o Brasil


A frase não é minha. É do jornalista da rádio CBN Adalberto Piotto, que postou em sua conta no Twitter uma afirmação que, para mim, resume quem foi Itamar Franco: "... presidente por acaso, mas um acaso que mudou o Brasil".

Desde que soube da morte do ex-presidente e senador por Minas Itamar Franco, mergulhei na leitura de comentários postados no Twitter e em matérias, artigos e uma porção de outros textos fazendo referência a essa histórica figura da política brasileira. Portanto, depois de tudo que já se disse, fica impossível não ser repetitivo em alguns pontos.

O fato é que Itamar Franco entrou para a história como um presidente que assumiu um país solapado pela inflação, por uma crise institucional como poucas vezes se vira antes e com a credibilidade dos detentores do poder tão ou mais em baixa que nos nossos dias. Um presidente que assumiu um mandato com o simples objetivo de tentar impedir que o país afundasse ainda mais, depois do politicamente desastroso governo Collor. Um presidente que assumiu para garantir a manutenção das instituições, provando que, após uma crise grave, seria possível que o país ainda respeitasse a ordem democrática. Mas o que se viu em dois anos e três meses de governo foi muito mais do que isso.

A impressão que tenho, como incurável viciado em noticiários que eu já era, mesmo aos 19 anos de idade, é que Itamar Franco assumiu a presidência determinado a entrar para a história do Brasil. E ele teve sucesso. Na verdade, ninguém havia entendido muito bem por que razão o mineiro de Juiz de Fora, que sempre andara próximo das forças de centroesquerda, havia se unido ao governador alagoano Fernando Collor de Melo para ser seu vice na disputa presidencial de 1989. Por outro lado, esse estranho fato foi extremamente benéfico para o Brasil, considerando a radical mudança nos rumos do governo depois que Itamar assumiu a presidência. Não houve quebra do pacto institucional democrático, mas houve uma certa revolução silenciosa.

Tudo começara quando, já em 1991, depois de pouco mais de um ano de governo Collor, Itamar parecia arrependido de ter se unido ao presidente e começava a fazer críticas públicas ao governo. Em meados daquele ano, o jornal Folha de S. Paulo estampava na capa a manchete: "Itamar critica política recessiva de Collor". Nesse momento, presidente e vice já não se entendiam mais e Itamar mais parecia um político de oposição do que um companheiro de chapa. Foi assim que, logo que veio o escândalo envolvendo o presidente e seu amigo PC Farias, Itamar começou a se articular para a possibilidade, que ia se tornando cada vez mais factível, de se tornar presidente da república. Isso ocorreu em 2 de outubro de 1992, quando ele assumiu interinamente, com o empeachment de Collor decretado pela Câmara dos Deputados. Em 29 de dezembro do mesmo ano, o Senado decretou o afastamento definitivo do presidente e Itamar prestou juramento no Congresso Nacional como novo ocupante do cargo máximo do poder executivo no país.

Cabe aqui um esclarecimento: embora o presidente Fernando Collor tenha enviado sua carta renúncia ao Congresso, por meio do seu advogado, esta não foi aceita pelo presidente da casa, já que a sessão de julgamento do presidente já havia começado. Portanto, não foi a renúncia que afastou Collor definitivamente da presidência, mas o julgamento a que ele foi submetido no Senado. Detalhe: julgamento a revelia, sem o comparecimento do réu.

O erro histórico do PT

Quando assumiu o governo, Itamar quis conversar com todas as forças políticas para montar uma coalisão capaz de remar o Brasil na difícil travessia que o país tinha pela frente. Todas as forças mesmo! Do PFL de Antônio Carlos Magalhães ao PC do B de João Amazonas, passando pelo PMDB, PSB, PPS e naturalmente o PT. Tanto que vários políticos de peso da esquerda chegaram a ocupar ministérios no governo, como foi o caso de Jamil Haddad (saúde) e Walter Barelli (trabalho e previdência).

Mas se o diálogo funcionou bem para a grande maioria dos partidos, não se pode dizer o mesmo do PT. Temendo talvez um enfraquecimento da figura de Luiz Inácio Lula da Silva, o partido decidiu que faria oposição crítica, ou seja, não participaria do governo, votaria com o presidente quando concordasse com suas medidas, mas se colocaria como oposição quando discordasse. E a decisão foi radicalmente cumprida, tanto que Walter Barelli, que era filiado ao partido, se desfiliou do PT antes de assumir o Ministério do Trabalho.

Mas a grande polêmica envolveu a ex-prefeita de São Paulo, Luíza Erundina, que foi convidada pelo presidente para assumir a Secretaria de Administração Federal, cargo com status de ministério. Ameaçada pela cúpula do partido, Erundina não se intimidou e aceitou o convite, o que lhe valeu a expulsão do PT.

Após sucessivas trocas de ministro da fazenda, Fernando Henrique Cardoso, que ocupava a pasta das relações exteriores, foi convocado para assumir os rumos da economia do país. Na verdade, o Plano Real começava a ser ensaiado antes, com a eliminação de três zeros do Cruzeiro, moeda que então circulava no país, e a troca do nome para Cruzeiro Real. Foi FHC que deu continuidade ao projeto, montando uma equipe que elaborou um plano econômico ousado, mas que se mostraria bem sucedido. Ao contrário da Argentina, que havia dolarizado sua economia, o Brasil optou por atrelar sua moeda podre a um fator diário de atualização, a URV. Assim, a moeda podre, isto é, o Cruzeiro Real, continuaria afundando, mas o indexador seria mantido estável. Posteriormente, o indexador foi convertido em moeda, estabilizando a economia e dando fim ao ciclo inflacionário que o país vivia. Todo esse sucesso credenciou Fernando Henrique a disputar a presidência e vencer já no primeiro turno as eleições de 1994.

Dizem que em história não existe "se", ou seja, que não devemos fazer especulações a respeito do que não aconteceu. Mas, como sou jornalista e não historiador, vou me dar ao luxo de quebrar a regra: o que teria acontecido se o PT não tivesse radicalizado e se recusado a participar do governo Itamar? Há quem diga que uma aliança PT-PSDB estava sendo preparada para as eleições presidenciais de 1994, numa chapa encabeçada por Lula e tendo o cearense Tasso Geressatti como vice. Verdade ou mera conversa de corredor, o fato é que a política é a arte de abrir portas, construir pontes e ocupar espaços. Assim, ao fechar a porta para Itamar Franco e deixar um vácuo político no governo, o PT permitiu que outras forças ocupassem o espaço. Fernando Henrique poderia ter continuado como um ótimo chanceler, sem alçar voos mais altos. Mas foi a inabilidade do PT que trouxe o sociólogo para o topo da cena política e, por consequência, lhe deu dois mandatos presidenciais.

E Itamar Franco? Entrou para a história como o presidente que fez, em dois anos e três meses, o que outros não haviam feito em mandatos completos: deu novos rumos à economia brasileira e deu novo gás à credibilidade das instituições democráticas. A virada começou ali. Foi no governo Itamar que o Brasil deixou de ser apenas motivo de chacota para os próprios brasileiros, aquele que recebeu uma banana do personagem Marco Aurélio, vivido por Reginaldo Faria em Vale Tudo, o país apenas do carnaval, das nádegas expostas e das belas praias, para se tornar um país de maior credibilidade e mais respeitado no cenário internacional. É evidente que ainda temos muitos e graves problemas: nossas instituições políticas continuam apodrecidas pela corrupção; educação e saúde vão mal; as diferenças sociais ainda são gritantes. Mas só um pessimista incurável poderia dizer que não somos um país melhor do que há 18 anos. PSDB e PT estão errados: o Brasil não nasceu em 2003, como afirma o PT, nem morreu em 2003, como apregoam os tucanos. O Brasil começou uma virada histórica em 1993, mudança que os governos de FHC e Lula tiveram a grandeza de não estragar.

E hoje, quando Itamar Franco nos deixa, fica ainda mais latente sua importância para a história do Brasil. Mesmo sendo um presidente que tanto alimentou o anedotário dos jornais e revistas, mesmo sendo zombado por pedir a volta do Fusca, com tudo isso, Itamar foi de fato o presidente que começou uma nova era na história do nosso país. E esse mérito ele leva consigo para sempre. Ficam as lembranças de um político sério, que levou a ética e o dever de governar às últimas consequências. Fica nossa saudade, aquela boa saudade mineira, de uma figura pública tão rara. Ficam nossas homenagens.