terça-feira, 9 de novembro de 2010

Brasília: 50 anos para o Brasil, um ano para mim


As pernas pareciam não me obedecer naquela tarde. Não era a primeira e nem seria a última vez que eu daria os passos que separavam o saguão da sala de embarque do aeroporto de Confins, mas, naquele momento, a porta, o detector de metais, o raio X, enfim, tudo tinha um significado especial. Depois de 28 anos, 8 meses e 22 dias morando na mesma cidade, a Belo Horizonte onde cheguei aos 7 anos, eu dava um passo adiante em minha vida pessoal e profissional. E que passo! Um passo de quase 800 quilômetros, ficando ainda mais distante do mar, cercado de Goiás por todos os lados.

Já havia algum tempo que eu tinha vontade de vir para Brasília, muito mais pelas oportunidades profissionais que isso me reservava do que propriamente por achar a cidade atraente. E, naquele momento no aeroporto, a situação era ainda mais complicada. Por questões profissionais, Marisa, minha esposa ainda não estava vindo comigo. Enquanto isso não fosse possível, eu me viraria morando em um flat, que me facilitaria muito a vida pelo fato de possuir serviço diário de arrumação. Assim, foi com duas malas enormes, meu violão, mochila nas costas e um coração comprimido no peito que tomei aquele voo de fim de tarde e pousei na capital do país antes que a noite chegasse por inteiro.

Se, por um lado, eu deixava grandes amigos (de quem nunca me esqueço) em Belo Horizonte, outras amizades começavam a aparecer no Planalto Central. Uma delas se manifestou exatamente na minha chegada. Uma das participantes da lista de discussão de utilizadores e interessados no tema "Cão Guia", Fernanda, que atua como voluntária na socialização de futuros cães guias no projeto Integra, aqui no Distrito Federal, perguntou-me por e-mail se eu tinha quem me apanhasse no aeroporto. Eu disse que não e ela se ofereceu não só para me buscar como para dar as primeiras orientações nas proximidades do flat onde eu iria morar. Foi muito bom encontrá-la na saída da sala de desembarque. Assim que colocamos as coisas no carro dela e começamos a andar, ela foi tentando me explicar a tal lógica dos endereços de Brasília. Eu já havia estado na cidade algumas vezes e tinha amigos que haviam tentado a mesma missão. Mas agora, pensava eu, era imprescindível que eu aprendesse esse sistema de setores, quadras e blocos, ou eu teria dificuldades para me locomover na cidade. Certamente não foi naquela tarde-noite que eu aprendi, mas as coisas começaram a fazer algum sentido.

No flat, o porteiro se assustou com o fato de um morador completamente cego e só estar se mudando. Ele ficou tão apavorado que começou a se dirigir a Fernanda em vez de falar comigo, o que me obrigou a chamar sua atenção para o fato de que o morador seria eu e não ela. Corrigida a falha, o cara começou a agir um pouco mais naturalmente e me perguntou as informações necessárias para preencher a ficha de entrada.

Depois de me ajudar a fazer o reconhecimento do apartamento, auxiliando inclusive na marcação em braile das teclas em baixo relevo do microondas, Fernanda me levou ao Brasília Shopping, para que eu pudesse jantar e passar em uma loja em que um vendedor me ajudasse a dar um nó em minha gravata. É que, infelizmente, ainda não aprendi a dar nó em gravatas, principalmente porque nunca tentei aprender. Como eu tinha mandado as gravatas para a lavanderia antes da viagem, os nós foram desfeitos e eu precisava resolver aquilo rapidamente, porque minha posse como servidor da Câmara dos Deputados seria na manhã seguinte.

Tudo resolvido, Fernanda me deixou na porta do flat e seguiu seu caminho. Era difícil entrar naquele pequeno apartamento com sala e cozinha americana, quarto e banheiro, e pensar que, durante algum tempo, aquela seria minha casa. Era difícil pensar que, no dia seguinte, eu precisaria sair dali em direção ao Congresso Nacional, mal sabendo onde ele ficava. Era difícil não saber sequer um número de ônibus e quanto ficaria uma corrida de táxi até o local. Será que 20 reais bastariam ou seria necessário desembolsar uns 50? Contudo, mais difícil era viver tudo isso distante da pessoa com qem eu havia dividido cada centímetro quadrado da minha vida nos últimos 11 anos. Faltavam 19 dias para o nosso aniversário de casamento. E eu pensava como determinados momentos da nossa vida podem ser cruéis. Tínhamos combinado que ela viria passar comigo o meu aniversário, mas a data do casamento passaríamos longe um do outro.

Mas tudo isso já tem um ano. Nesse 9 de novembro de 2010, completaram-se 365 dias que cheguei a esse lugar que, cada dia mais, considero minha casa. Principalmente porque Marisa, esse grande presente que Deus me deu, está comigo todos os dias. É muito bom sair para o trabalho sabendo que, na volta, estaremos juntos de novo. Desde 14 de maio, quando ela se mudou definitivamente para cá, Brasília passou a ter mais sentido para mim.

É claro que ainda temos muito o que aprender, muito que nos acostumarmos nessa cidade tão diferente da nossa. Mas, aos poucos, ela também vai se tornando nossa. Queremos mostrar às pessoas que aqui vêm a Catedral, o Congresso, o Centro Cultural Banco do Brasil, o Lago Paranoá, enfim, queremos mostrar a Brasília que agora faz parte de nós. E é assim que, pouco a pouco, a Brasília que, para os brasileiros, fez 50 anos, cria em mim suas raízes. Afinal, minha Brasília tem apenas um ano. Estou feliz.

Para que serve o Enem?

O mais recente embróglio no qual se meteu o Ministério da Educação, na tentativa de explicar o inexplicável e justificar o injustificável, isto é, o segundo ano seguido de problemas na aplicação do Exame Nacional de Ensino Médio (Enem), trouxe ao debate as evidentes fragilidades da instituição no aspecto organizacional/logístico. As falhas verificadas no ano passado, com o extravio de provas e o vazamento de dados dos estudantes cadastrados para realizar o exame, já deveria ter servido de bom alerta para que, no Enem 2010, o governo tivesse um pouco mais de critério na contratação das empresas responsáveis pela prova, desde sua elaboração até etapas como impressão, transporte e distribuição. Os acontecimentos deste ano provam que isso não ocorreu.

Entretanto, os sucessivos problemas na aplicação do Enem podem não trazer a baila uma discussão talvez mais importante do que a simples logística. E, infelizmente, a imprensa gasta às vezes tempo demais no superficial e aprofunda de menos as discussões que deveriam ser centrais, mas passam a ser periféricas. Nesse caso, pouco se falou no objetivo da aplicação do Enem, ou seja, para que ele serve. Penso que esse deveria ser o centro da discussão. Toda a polêmica criada em torno da aplicação do exame só teve lugar porque, com a adoção da nota do Enem, total ou parcialmente, como critério para o ingresso nas universidades públicas, ele passou a ter uma importância vital para os estudantes em vias de concluir o ensino médio. Talvez, se as notas não tivessem tanto valor, alguns estudantes não estariam tão preocupados se o seu caderno de questões era amarelo ou de qualquer outra cor, se o seu gabarito estava correto etc.

Ora, todo esse frenesi ocorre exatamente porque, nos últimos anos, o governo inverteu o papel que cabia ao Enem, que passou a ser muito mais uma espécie de substituto para o vestibular do que um sistema de avaliação do ensino médio, objetivo para o qual ele foi criado. Para quem não se lembra, o Exame Nacional de Ensino Médio foi criado ainda no governo FHC, algum tempo depois do Exame Nacional de Cursos, o chamado Provão, instituído para avaliar o ensino superior. Apesar de criticar duramente o Provão, com bastante barulho feito pela União Nacional dos Estudantes (UNE), o PT manteve o sistema, trocando apenas o nome para Enad, e manteve com o mesmo nome o Enem. Partiu de algumas universidades a iniciativa de utilizar a nota do Enem como parte da avaliação para o ingresso de novos universitários. Posteriormente, o governo alinhavou um grande acordo com as universidades federais, que permitiu aos estudantes pleitear vaga em um determinado curso em dada instituição a partir do resultado obtido no exame.

Esse sistema trouxe vantagens, como o fim da necessidade de se prestar vários vestibulares. Por outro lado, o objetivo que ensejou a criação do exame, ou seja, avaliar as instituições de ensino médio no Brasil, se perdeu completamente. E a razão é simples: se a nota do Enem determina o ingresso ou não do estudante em determinada universidade em um certo curso, é evidente que o foco do aluno passa a ser um bom resultado na prova. Assim, ele se prepara, estuda a partir de provas passadas, chegando, em alguns casos, a frequentar cursos preparatórios para prestar o exame.

Ora, como é possível avaliar a escola na qual o indivíduo cursou o ensino médio se ele, em vez de levar com normalidade sua vida acadêmica, passou horas por dia se preparando para esse exame? Na verdade, o que está-se avaliando com o Enem é a capacidade dos alunos de absorver conhecimento a partir de uma atividade intensa de estudos, ou seja, exatamente o mesmo tipo de avaliação feita com o vestibular. Bingo! Dá então para deduzir que o Enem não é sequer um substituto para o vestibular, posto que o Enem nada mais é do que um vestibular em nível nacional.

O resultado disso é que o governo não dispõe atualmente de instrumentos/mecanismos eficazes para avaliar o ensino médio no país. O papel do Enem para esse fim foi suprimido e nada foi colocado no lugar. O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) poderia ser uma resposta a essa lacuna, mas ele é amplo demais para obtermos um retrato especificamente sobre o ensino médio.

É evidente que o clássico vestibular, sozinho, não era o instrumento adequado para o acesso à universidade. Mas utilizar o Enem para isso configura outro erro, desviando o propósito de um instrumento criado para algo tão vital quanto entrar para o ensino superior: avaliar o ensino médio para corrigir suas falhas e permitir que o aluno que ingresse na universidade esteja mais bem preparado.