domingo, 15 de maio de 2011

Ed Motta, Odete Roitman e a "gente diferenciada"

Não é por acaso que três fatos que chamaram a atenção na semana passada tiveram, como pano de fundo, o preconceito em relação às classes sociais, às regiões de origem das pessoas e a uma certa antibrasilidade (se é que posso chamara assim) por parte de alguns. As lamentáveis frases escritas pelo cantor Ed Motta em seu perfil no Facebook, a recusa de moradores de uma região de alto poder aquisitivo de São Paulo em ter por perto uma estação do metrô, sob a alegação de que o transporte de massa leva uma "gente diferenciada", e as frases preconceituosas de uma torcedora do Flamengo em relação aos nordestinos podem ter origem num fenômeno antigo: a estagnação intelectual da antiga classe média brasileira.

Recentemente, numa entrevista para o canal por assinatura Globonews, a atriz Beatriz Segall afirmou que, no contexto político e econômico em que foi produzida a novela Vale Tudo, sua personagem na trama, a vilã Odete Roitman, tinha uma certa razão nas críticas que fazia ao país. Como devem se lembrar os que viveram o período da redemocratização do Brasil, não foi só a personagem de Beatriz Segall que disparou críticas em relação à falta de seriedade das instituições e até mesmo de parte do povo brasileiro. Os programas de humor da época se fartavam de dizer que, no Brasil, tudo se resolvia na malandragem, no jeitinho. E outro ponto dessa crítica era a inevitável comparação com os países do chamado Primeiro Mundo, mais especificamente Estados Unidos e os países europeus. Essas críticas nasciam dentro das pessoas de maior poder aquisitivo, que já naquela época viajavam para o exterior e compravam produtos importados, e era fartamente absorvida pelos mais pobres através da televisão.

Ocorre que, desde que o Brasil começou a tratar com seriedade alguns de seus problemas mais crônicos, como a inflação e a desigualdade, emergiu uma nova classe média, que só pôde se viabilizar porque experimentou uma condição mais favorável de renda, trabalho e até mesmo escolaridade. Fato é que o Brasil dos últimos 18 anos, os dois anos do governo Itamar Franco e os oito de FHC e de Lula, mudaram bastante o cenário econômico do país. E essa nova classe média que emergiu da pobreza tem um certo sentimento de gratidão por estar onde está. É claro que isso se traduz em votos, haja vista a tranquila reeleição de Fernando Henrique Cardoso em 1998, sinalizando que o povo aprovava as mudanças na economia, e as duas eleições de Lula, apontando o desejo de um aprofundamento nas questões sociais. Mas se traduz também numa defesa mais efusiva do país. Quem estava na miséria, ou muito próximo dela, durante os governos de Sarney e Collor, enxerga hoje um Brasil que, apesar de muitas deficiências, especialmente nas instituições políticas, é muito diferente (quero dizer melhor, mais atraente, mais interessante) do que aquele de quase 20 anos atrás.

E quanto àqueles que, no período da redemocratização, já pertenciam à classe média, especialmente a alta? Esse é um grupo para quem as mudanças ocorridas no país nos últimos governos não tiveram tanta importância. Essa classe média alta continuou indo ao exterior fazer compras, continuou adquirindo importados e continuou pensando que o que é bom vem de fora e o que é feito no Brasil não presta. Quando essas críticas estão focadas apenas nas coisas, como os produtos manufaturados aqui, ou nas instituições, o discurso, embora preconceituoso na essência, pode muito bem ser esquecido ou ignorado. O problema é quando esse pensamento, bem ao estilo Odete Roitman, se volta contra o povo.

Daí aparecem frases de preconceito regional, afirmando que pessoas de uma determinada região são mais bonitas e civilizadas do que de outras, como disse Ed Motta comparando o Sul do Brasil e a cidade de São Paulo com o restante do país. O que o cantor fez em seu perfil do Facebook foi nada menos do que utilizar velhos estereótipos para definir o povo brasileiro, como relaxado, mal vestido, feio etc. Também a torcedora do Flamengo, ao manifestar o seu desgosto pela derrota de seu time para o Ceará, trouxe nas palavras a carga de preconceito que vem do tempo em que o êxodo de nordestinos para o Sul e Sudeste era muito grande. Essa realidade mudou e hoje o nordeste recebe de volta muitos dos que um dia tentaram a vida em outros estados. Mas não mudou a mente da torcedora, que certamente ouviu esse tipo de frase em casa. É a mesma mentalidade que norteia os moradores do bairro paulistano de Higienópolis, que não desejam conviver com a tal "gente diferenciada", entrando e saindo de uma estação do metrô.

No caso específico de Ed Motta, cujo trabalho musical aprecio muito, as declarações soaram mais estranhas. Sobretudo porque, alguns dias antes, o cantor havia estado em Manaus e postou, no seu Twitter, elogios rasgados à capital amazonense, com especiais referências à culinária da cidade. É evidente que esse fato não diminui a gravidade do que o músico postou no Facebook. Também não ajuda a fala posterior de que se tratava de uma brincadeira com amigos. Talvez, se Ed Motta, especialista em vinhos, dissesse que havia passado da conta na sua experimentação, seria mais compreensível. Mas o fato é que, além de postar as infelizes ofensas a artistas e aos brasileiros de um modo geral, Motta discutiu com um jovem que questionou suas declarações, prova de que ele sabia que o perfil estava aberto e sabia bem o que dizia. É notório que o cantor nunca escondeu suas preferências por muita coisa que vem dos Estados Unidos, inclusive a música, que tanto o influenciou. Em seus tweets, Motta frequentemente usa expressões em inglês, principalmente para elogiar algo que deseja mostrar aos seus seguidores. Após um link do Youtube para determinada música, leem-se expressões como "deep", ou "deep style". O que não se sabia, e as frases no Facebook deixaram claro, é que essas manifestações americanizadas não são apenas um estilo, mas uma preferência e, pior, uma visão preconceituosa do seu próprio país.

Quem me conhece e acompanha o que escrevo aqui ou no Twitter sabe que não sou ufanista. Longe de mim aquela idéia de "pra frente Brasil", que funcionou tão bem no regime militar. Para mim, ir para frente é mais do que ter uma música, uma boa seleção de que esporte seja. Ir adiante na história é fazer com que o povo se veja como nação e, com os pés fincados na realidade, trabalhe para construir o futuro. Acho que, aos trancos e barrancos, em meio a escândalos, politicagens, o Brasil tem sobrevivido e melhorado. Não podemos achar que estamos no paraíso, mas também não podemos pensar que, ao pousarmos no aeroporto JFK, em Nova York, estaremos na terra de todos os sonhos. Contudo, infelizmente, parece que a antiga classe média alta, para quem o país estar bem ou mal faz pouca diferença, já que ela tem os recursos para se manter de um jeito ou de outro, ainda enxerga o país como o Brasilde Odete Roitman, Ed Mota e dos moradores de Higienópolis. Já cheguei a ouvir até que, se a Apple de fato abrir uma fábrica no Brasil, IPhone, IPad e os demais produtos da companhia vão perder em qualidade, já que tudo que é fabricado neste país não presta. O que muitos se esquecem é que os produtos tão orgulhosamente comprados nos Estados Unidos foram, em grande parte, produzidos na China, Malásia, Singapura e outros tigres asiáticos.

3 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Grande texto, Montanha!

    Vou compartilhar esse link com meus amigos feios, sem talento e diferenciados que andam de metrô.

    Beijo

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  3. É isso ai Montanha! Concordo com você. Abração

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