sexta-feira, 7 de maio de 2010
Nos seus 50 anos, Brasília mostra que tem muito a aprender em solidariedade
Brasília completou 50 anos no dia 21 de abril e, tanto na mídia local como na nacional, não faltaram reportagens e anúncios buscando ressaltar as qualidades dessa cidade inventada, aliás, a única no mundo construída com o objetivo definido de se tornar a capital de um país. Várias matérias destacaram a história do nascimento da cidade, os operários que aqui trabalharam, os episódios pitorescos envolvendo o presidente JK e como o que era só uma idéia foi ganhando contornos de boa parte da Brasília que hoje conhecemos. Nos anúncios, especialmente na mídia local, a exaltação ao povo brasiliense, sua mistura de sotaques, costumes e essa eterna busca da construção de uma identidade candanga. Até mesmo uma rede de drogarias da capital investiu em um anúncio cujo foco era "Pelo orgulho de ser brasiliense".
Ao assistir todas essas matérias e anúncios, eu fico com um enorme desejo no coração de que as coisas sejam realmente como descritas. Mas, após seis meses de residência no Planalto Central, minha impressão é um tanto diferente. Brasília é, para mim, um ótimo lugar para se trabalhar, mas difícil para se relacionar. Na minha condição de pessoa com deficiência, esse jeito de ser frio, indiferente e desligado do brasiliense se torna ainda mais cruel. Não raro, quando quero uma informação, preciso perguntar umas três vezes em um grupo de pessoas até que alguém me responda. Quando chego a um ponto de ônibus e existe um veículo parado, embarcando e desembarcando passageiros, pergunto de qual linha se trata e não ouço resposta. Pior: peço a uma pessoa que está no ponto para me avisar quando passar o ônibus que desejo tomar e, se a pessoa não vai tomar o mesmo ônibus e o dela passa antes, ela simplesmente vai embora sem avisar que está de saída. Resultado: eu penso que existe alguém atento para me avisar quando o meu ônibus passar, mas não há ninguém, o que certamente me faz perder o transporte.
Aliado a isso, existe a péssima qualidade do serviço de transporte do Distrito Federal. Para se ter uma idéia, na Esplanada dos Ministérios, um dos locais mais importantes de Brasília, não circula ônibus após as 20h. Se um funcionário do congresso Nacional ou dos ministérios precisa ficar até mais tarde no trabalho e não tem carro, a solução é tomar um táxi. Enfim, Brasília é uma cidade feita para quem tem carro e, claro, dirige. Digo isso porque, no meu caso, ter o carro não é o bastante. Possuo carro mas, como ainda não dão carteira de habilitação para cegos (risos), não posso dirigir. Minha esposa dirige quando estamos juntos e muitas vezes me leva e busca quando preciso me deslocar de carro, mas eu não acho que minha mulher tenha que ser minha motorista particular. Assim, eu gosto muito de ter minha independência para me deslocar e, numa cidade como Brasília, isso fica mais difícil.
Para se ter uma idéia de como a capital da república trata mal as pessoas com deficiência, cito o exemplo de um dos pontos mais caóticos da cidade: a rodoviária do Plano Piloto (veja foto). Para começar, é preciso explicar que essa rodoviária, que é o marco zero na divisão entre as asas sul e norte, nada tem a ver com a chegada dos ônibus intermunicipais e interestaduais, os chamados ônibus de viagem. Em Brasília, quem vem de fora chega pela Estação Rodo-Ferroviária, que fica mais afastada do centro da capital. A rodoviária do Plano Piloto funciona como uma estação terminal de ônibus vindos de todas as partes, tanto do Plano como das cidades satélites. Esse é um ponto positivo em Brasília. Se você não sabe onde passa o ônibus que vai para onde você quer, a saída é pegar um ônibus para a rodoviária e, de lá, tomar outro transporte. Além disso, a rodoviária dá acesso também à estação terminal do metrô, que infelizmente só cobre a Asa Sul e as cidades satélites que se estendem paralém dela, ou seja, Guará, Águas claras, Taguatinga, Ceilândia e Samambaia.
O grande problema é que, sendo o ponto final de uma quantidade enorme de linhas de ônibus, a rodoviária é um verdadeiro labirinto. Embora as baias onde param os ônibus sejam fixas para as linhas, o terminal é muito amplo e, para uma pessoa cega que precisa de referências para caminhar, é muito difícil localizar a baia correta para tomar o ônibus que se deseja. Mesmo para mim, que conto com a ajuda de minha cadela guia Mully, encontrar o local certo para pegar o ônibus é um desafio. Com Mully, eu consigo andar perfeitamente na rodoviária, sem esbarrar nos transeuntes ou nos obstáculos. Mas isso não é o bastante. Como os terminais são muito semelhantes e como várias linhas me levam até a rodoviária, eu sempre chego à estaçção por lugares diferentes. Assim, o trajeto do local onde desembarco ao outro, onde tomarei o ônibus para o destino final, é sempre diferente, o que não permite que a minha companheira estabeleça um padrão de trajeto.
Assim sendo, eu preciso de auxíliio de outras pessoas para localizar a baia onde está estacionado o ônibus que desejo. Tenho então dois problemas. Por mais incrível que possa parecer, não existe um funcionnário sequer na rodoviária destinado a prestar assistência, dar informações ou conduzir pessoas que necessitam de auxílio. Me lembro de apenas uma vez em que encontrei um policial militar que me indicou o local que eu procurava. Não existindo um profissional para prestar essa ajuda, recorro ao povo brasiliense que, segundo os anúncios de TV dos 50 anos, são pessoas solidárias e prestativas. Infelizmente, os anúncios se equivocaram. Para não ficar andando sem rumo, paro em um determinado local e tento sinalizar para os que estão passando, mas só depois de muita insistência consigo atrair a atenção de alguém. Pergunto então onde posso tomar determinada linha de ônibus. A resposta que obtenho é, geralmente, genérica. "Você vai ter que voltar", me responde alguém. Mas será que ela sabe de que direção eu vim para dizer isso? "É do outro lado", diz outro e "Você pode seguir reto e lá na frente perguntar de novo", emenda mais um.
Na tarde de ontem, quinta-feira, ia eu para o trabalho e o fato se repetiu. Depois de desembarcar do ônibus que vinha da avenida W3 Norte para a rodoviária, fui perguntar para descobrir onde estava o ônibus para a Esplanada dos Ministérios. Só que, dessa vez, a coisa foi pior. As duas pessoas que me responderam disseram não saber. Uma delas teve a idéia de me levar a um dos balcões onde ficam os despachantes e fiscais das empresas de ônibus. De fato, o fiscal sabia onde eu deveria ir, mas afirmou que não poderia me conduzir até lá, já que estava por demais ocupado. Deu-se aí o seguinte diálogo:
- O senhor pode ir andando até o final e virar à direita. O ônibus para a Esplanada vai estar logo à frente, o senhhor vai ver lá...
- Amigo, acho que você não percebeu que eu sou cego. Existem várias baias lá. Como eu vou encontrar a baia correta? Será que não há ninguém aqui que possa prestar esse serviço, nenhum guarda, nada?
- É, a rodoviária é complicada mesmo. Mas eu não posso sair daqui.
Ao fim e ao cabo, depois de alguma insistência minha, ele designou um dos despachantes para que me conduzisse até o local onde estava o ônibus para a Esplanada dos Ministérios. O resultado disso foram mais de dez minutos entre a busca por uma ajuda e a chegada ao ônibus. Se eu tivesse chegado ao local certo logo depois de desembarcar do primeiro ônibus, eu teria pego o carro anterior e chegaria ao trabalho 15 minutos antes. Felizmente, não me atrasei, mas as consequências dessa dificuldade criada na rodoviária poderiam ser bem piores, estivesse eu em cima da hora.
Enfim, até aqui, não consegui descobrir onde está a tal solidariedade dos brasilienses. Mas, como dizem também que Brasília é a capital da esperança, eu, que sou um otimista por escolha, tenho esperança de que, com o tempo de convivência, eu venha a descobrir um lado do brasiliense que, para mim, ainda está oculto.
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